Desejo de justiça para o caso Zilda Santos motivou criação do jornal Caiçara
Foi devido à coragem de uma família – sobretudo de uma jovem mulher – que o jornal Caiçara nasceu. Motivados pelo desejo de justiça, Didio e Maria da Luz Augusto, mais conhecida como Lulu, publicaram em 12 de agosto de 1953 a primeira edição de um dos noticiários mais antigos do Vale do Iguaçu. Durante sete décadas nas mãos da família, o Caiçara manteve-se íntegro e firme às suas convicções até sua edição derradeira, publicada no último 21 de maio.
“Preferimos morrer em pé do que vivermos ajoelhados”, relata Delbrai Augusto Sá, ao nos receber em casa, no cômodo que abriga a redação e acervo do Caiçara. A decisão de encerrar as atividades começou a ser tomada no ano ado. Dificuldade de concorrer com a tecnologia, inimizades veladas criadas pela polaridade política, e a impossibilidade de conciliar o ideário da equipe com o de alguns anunciantes foram fatores decisivos para o veredito. “Temos que matar um leão por dia para permanecermos de pé. Mas chegou um momento em que dissemos: não temos mais forças para matar um leão por dia”, completa.
Neto de Didio e sobrinho de Lulu, Delbrai faz parte da terceira geração dos Augusto a comandar o jornal. Por consequência, cresceu ouvindo dos familiares as histórias sobre as agressões contra Zilda Santos, fato que inspirou a criação do Caiçara. Relatos contam que a adolescente, aos 13 anos, foi mantida em cárcere privado, sendo violentada e torturada por seus captores. Dias depois, seu corpo foi encontrado boiando no Iguaçu.
Famoso no imaginário popular das cidades, e até hoje sem solução, o crime foi noticiado primeiramente pelo tio de Delbrai, Dante Augusto, que na época, em 1948, apresentava um programa na rádio União. O radialista, após ser procurado por Marcolina Sás, tia de Zilda, começou a denunciar o caso. Posteriormente, Dante, que trabalhava na Secretaria da Fazenda, foi transferido para Curitiba, o que o impediu de permanecer no programa.
Na época, Lulu também morava em Curitiba, e comandava um jornal literário na capital. Com a morte precoce de Dante, em 1951, a jovem decidiu regressar para União da Vitória e dar continuidade às investigações iniciadas pelo irmão. Criou, então, a radionovela “O Crime do Iguaçu”, que prometia, em seu último capítulo, revelar os nomes de todos os envolvidos no caso Zilda Santos.
O programa, entretanto, nunca foi ao ar, devido a uma decisão judicial. Inconformado com a censura à filha, Didio, que na época escrevia para O Comércio, procurou o dono do jornal, Hermínio Milis, para publicar a transcrição do capítulo final da radionovela. Impedido de concretizar a ideia, Didio ofereceu à Lulu a possibilidade de criar seu próprio jornal para abordar o caso, mesmo que ele tivesse apenas uma edição. “Em seguida, o jornal a a dar voz para essas pessoas desvalidas, e para tantas Zildas que padeceram sob a barbárie do patriarcado”, ressalta Delbrai.
Lulu, décadas após o crime, nunca desistiu de Zilda Santos. Periodicamente relembrava o caso da jovem, e das demais possíveis vítimas da barbárie. Mesmo sem conseguir punir os agressores judicialmente, Delbrai acredita que, de certa forma, o Caiçara cumpriu o papel a que se propôs, conseguindo expor, ainda que nas entrelinhas, os possíveis criminosos. “Envergonhados, eles acabaram sumindo gradualmente de cena, porque foi o jornal Caiçara que falou: esses são os perpetradores do bárbaro assassinato”.
Lulu foi responsável pelo Caiçara até o último dia de sua vida, em 13 de março de 2016. Em 2022, como homenagem a esta mulher ímpar na história do Vale do Iguaçu, a via pública que une União da Vitória a Porto União recebeu, de ambas as istrações, o nome de Travessa Jornalista Lulu Augusto.
Para Delbrai, a tia é sinônimo de coragem. “Fundar um jornal e mantê-lo em pé por 60 anos não é para qualquer um. O Caiçara era a vida da Lulu”.
Mudanças necessárias
A segurança pública marcou a história do Caiçara. René Augusto, irmão de Lulu, foi o responsável pela criação da coluna Primeira Mão, dedicada à publicação de notícias sobre crimes insolúveis do Vale do Iguaçu.
Quando Lulu faleceu, Margarete Schwab Augusto Sá, esposa de Delbrai, ou a dirigir o jornal. “Eu entendi, e ela concordou comigo. Como o Caiçara foi durante 60 anos dirigido por uma mulher, nada mais justo que continuasse nas mãos de uma mulher”, explica Delbrai.
Desde então, o jornal ou por reformulações. A coluna policial, por exemplo, deixou de ser publicada após o Caiçara perder um processo por ter publicado a foto de duas pessoas acusadas de assaltar um mercado. Um dos suspeitos que apareciam na imagem – enviada para o jornal por forças de segurança – foi absolvido, e processou o noticiário por se sentir lesado. O homem ganhou o caso, recebendo como indenização, paga pelo Caiçara, o valor de um automóvel.
Em 2016, optou-se por um jornalismo focado em crônicas dos mais diversos segmentos socioeconômicos. Apesar das mudanças, e da decisão de arrefecer o lado combatível proposto pelos idealizadores do Caiçara, Margarete acredita que as escolhas seriam aprovadas. “A Lulu foi insubstituível em todos esses anos em que estivemos à frente da empresa. Foi uma responsabilidade muito, muito grande. Trabalhamos direitinho. Eu acho que ela deve ter ficado feliz porque demos continuidade”.
A possibilidade de manter o Caiçara, mesmo que digitalmente, é, neste momento, remota. O arquivo, com todas as 2.601 edições, será doado para o Acervo Histórico de União da Vitória. O material será digitalizado e, posteriormente, disponibilizado para consulta popular. “É um grande legado que o jornal Caiçara está deixando”, declara Margarete.
Quase 72 anos após a estreia do jornal que poderia ter apenas uma edição, o Caiçara sai de cena, mas com uma história que jamais será apagada. Se todo esse enredo virasse livro, Delbrai se inspiraria no título Confesso que Vivi, de Pablo Neruda, e parafraseado em Confesso que Perdi, de Juca Kfouri. “Talvez o nosso fosse Confesso que Tentei”.
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